Verbetes para um diário afectivo
Francisco Topa
E haverá maior graça do que esta de descobrir (abrir as cortinas) as palavras penduradas na Huíla, em Belo Horizonte, em Luanda e no Porto, Lisboa e Rio de Janeiro já curtidas pelo sol de outros dicionários e arrancar-lhes ainda assim a luz escondida que as faz e trazê-las à desordem dos nossos dias e noites?”, escreve Ana Paula Tavares, colaboradora do Rede Angola, na abertura do livro. “Haveria de chegar o dia em que as palavras
encostar-se-iam umas às outras a fazer cama de vento, assobio chuvoso de prosa em distância de ponte, falésia morna para receber as quatro chuvas, a muitas mãos, a muitos sonhos. Para mim, seria (para sempre…)
uma ‘mínima enciclopédia de olhar e de sentir’ e haveria de agradecer aos três companheiros de viagem o privilégio de terem permitido que também eu me aproximasse. Eu e as minhas mínimas palavras de sentir
para olhar outra e outra vez. Como se olham as coisas vagarosas”, escreve Ondjaki.
A primeira lição de desaprendizagem que este livro nos oferece tem que ver com o conceito de autor: à instabilidade decorrente da morte do autor proclamada por Barthes, junta-se agora um dado que, não sendo inteiramente inédito, é incomum – uma autoria repartida por quatro, em que cada um conserva a sua parte (neste caso, ¼ de verbete), mas em que o conjunto é mais que a soma das partes, afetando o todo a leitura de cada uma delas. Dito de outro modo: embora seja possível ler este livro como um conjunto de quatro volumes (os verbetes de Ana Paula Tavares, Marmelo, Ondjaki e Paulinho), a verdade é que todos eles se tocam, contaminam, influenciam, num diálogo intertextual
em que todo e parte assumem uma configuração que lembra o conhecido soneto concetista do lusobrasileiro Gregório de Matos (a propósito do aparecimento do braço de uma estátua do Menino Jesus que tinha sido roubada): "O todo sem a parte não é todo, / a parte sem o todo não é parte, / mas se a parte o faz todo, sendo parte, / não se diga que é parte, sendo todo.". Ainda por cima, a identidade dos quatro autores é marcada por uma acentuada diversidade: ao nível das nacionalidades (dois angolanos, Ana Paula e Ondjaki, um português, Marmelo, e um brasileiro, Paulinho); do género (uma mulher e três homens); de geração (pelo menos vinte anos separam os mais velhos, Ana Paula e Paulinho, dos restantes); e da forma mais habitual de expressão (Ana Paula e Paulinho são sobretudo poetas, ao passo que os restantes são sobretudo ficcionistas, sendo certo que todos eles têm feito incursões por outras linguagens). Por último, há diferenças na experiência de colaboração entre eles: Ana Paula e Manuel Jorge Marmelo já tinham publicado em 2005 um romance que escreveram a meias, Os olhos do homem que chorava rio; a mesma Ana Paula comparece de modos diversos (dedicatória, carta-posfácio, etc.) em vários livros de Ondjaki.
O segundo modo de desaprendizagem deste Verbetes para um dicionário afetivo está na proposta que lhe subjaz: não um dicionário, mas “verbetes para”, numa forma de sublinhar o que há de provisório, de hesitante, de incompleto, de fragmentário, no projeto. Derivado de verbum, ‘verbete’ parece aqui ser tomado, não no sentido que lhe dão os lexicógrafos, mas na sua aceção etimológica
de ‘pequena palavra’ ou, por metonímia, ‘pequeno papel’, o que será um modo de sinalizar a especial natureza deste dicionário: trata-se de um dicionário “afectivo”, destinado a coligir afetos, efeitos, por isso mesmo contingentes e pessoais.
Verbetes para um diário afectivo
Francisco Topa
E haverá maior graça do que esta de descobrir (abrir as cortinas) as palavras penduradas na Huíla, em Belo Horizonte, em Luanda e no Porto, Lisboa e Rio de Janeiro já curtidas pelo sol de outros dicionários e arrancar-lhes ainda assim a luz escondida que as faz e trazê-las à desordem dos nossos dias e noites?”, escreve Ana Paula Tavares, colaboradora do Rede Angola, na abertura do livro. “Haveria de chegar o dia em que as palavras
encostar-se-iam umas às outras a fazer cama de vento, assobio chuvoso de prosa em distância de ponte, falésia morna para receber as quatro chuvas, a muitas mãos, a muitos sonhos. Para mim, seria (para sempre…)
uma ‘mínima enciclopédia de olhar e de sentir’ e haveria de agradecer aos três companheiros de viagem o privilégio de terem permitido que também eu me aproximasse. Eu e as minhas mínimas palavras de sentir
para olhar outra e outra vez. Como se olham as coisas vagarosas”, escreve Ondjaki.
A primeira lição de desaprendizagem que este livro nos oferece tem que ver com o conceito de autor: à instabilidade decorrente da morte do autor proclamada por Barthes, junta-se agora um dado que, não sendo inteiramente inédito, é incomum – uma autoria repartida por quatro, em que cada um conserva a sua parte (neste caso, ¼ de verbete), mas em que o conjunto é mais que a soma das partes, afetando o todo a leitura de cada uma delas. Dito de outro modo: embora seja possível ler este livro como um conjunto de quatro volumes (os verbetes de Ana Paula Tavares, Marmelo, Ondjaki e Paulinho), a verdade é que todos eles se tocam, contaminam, influenciam, num diálogo intertextual
em que todo e parte assumem uma configuração que lembra o conhecido soneto concetista do lusobrasileiro Gregório de Matos (a propósito do aparecimento do braço de uma estátua do Menino Jesus que tinha sido roubada): "O todo sem a parte não é todo, / a parte sem o todo não é parte, / mas se a parte o faz todo, sendo parte, / não se diga que é parte, sendo todo.". Ainda por cima, a identidade dos quatro autores é marcada por uma acentuada diversidade: ao nível das nacionalidades (dois angolanos, Ana Paula e Ondjaki, um português, Marmelo, e um brasileiro, Paulinho); do género (uma mulher e três homens); de geração (pelo menos vinte anos separam os mais velhos, Ana Paula e Paulinho, dos restantes); e da forma mais habitual de expressão (Ana Paula e Paulinho são sobretudo poetas, ao passo que os restantes são sobretudo ficcionistas, sendo certo que todos eles têm feito incursões por outras linguagens). Por último, há diferenças na experiência de colaboração entre eles: Ana Paula e Manuel Jorge Marmelo já tinham publicado em 2005 um romance que escreveram a meias, Os olhos do homem que chorava rio; a mesma Ana Paula comparece de modos diversos (dedicatória, carta-posfácio, etc.) em vários livros de Ondjaki.
O segundo modo de desaprendizagem deste Verbetes para um dicionário afetivo está na proposta que lhe subjaz: não um dicionário, mas “verbetes para”, numa forma de sublinhar o que há de provisório, de hesitante, de incompleto, de fragmentário, no projeto. Derivado de verbum, ‘verbete’ parece aqui ser tomado, não no sentido que lhe dão os lexicógrafos, mas na sua aceção etimológica
de ‘pequena palavra’ ou, por metonímia, ‘pequeno papel’, o que será um modo de sinalizar a especial natureza deste dicionário: trata-se de um dicionário “afectivo”, destinado a coligir afetos, efeitos, por isso mesmo contingentes e pessoais.

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